Dentre alguns dos principais trabalhos realizados sobre a Umbanda, Roger Bastide permanece ainda em posição de grande destaque, dado o volume e a qualidade de seus escritos sobre os cultos afro-brasileiros no Brasil. Em As Religiões Africanas no Brasil (1960), Bastide trata das formas históricas do sincretismo no Brasil e da permanência dos valores religiosos africanos no interior de uma sociologia dos contatos entre civilizações que aqui se processaram. No interior do sistema explicativo de Bastide, a apreensão do mundo africano joga o intérprete obrigatoriamente para a compreensão da relação entre negros e brancos, no contexto da sociedade multirracial e pluricultural brasileira. Roger Bastide interpreta a Umbanda como sendo resultado, no plano ideológico, da integração do negro como proletariado à sociedade de classes brasileira de inícios do século.
De acordo com o autor, o espiritismo que se introduziu no Brasil por volta de 1863 teve sucesso imediato porque o espiritismo corresponderia a certas necessidades nas classes proletárias e deserdadas das grandes cidades, e no seu desenvolvimento se amoldaria segundo as categorias sociais e assumiria aspectos diferentes. O primeiro espiritismo, elitista, freqüentado, sobretudo pelos brancos de classe média na Europa, introduz-se e altera-se em meio brasileiro, respondendo a um desejo de saúde física e espiritual, contra as misérias do mundo passageiro. Passando da classe baixa dos brancos para a classe baixa dos homens de cor, o espiritismo voltaria a se modificar. Os espíritos que agora vão encarnar pertencem ao mundo dos índios e dos negros, como se a divisão racial continuasse no além. O espiritismo então, prolongando a religião do primitivo, leva o animismo a uma justificação científica, uma tentativa de se igualar ao branco e fazer o animismo passar para a linha da civilização. Esse “baixo-espiritismo”, ao desenvolver-se, não permanecerá adstrito à classe dos homens de cor; os brancos nele ingressarão e frequentemente se tornarão seus chefes. Nem por isso os negros e mulatos deixarão de constituir a grande maioria dos seus adeptos. E isso porque, em conjunto, a estratificação das classes sociais corresponde, com pouca diferença, a estratificação de cores.
O sucesso dessa nova seita para Bastide, a primeira no Rio, em seguida nos outros Estados do Brasil – Minas, Rio Grande do Sul, São Paulo, Recife -, prova que ela correspondia à nova mentalidade do negro mais evoluído, em ascenção social, que compreendia que a macumba o rebaixava a olhares brancos, mas que entretanto não queria abandonar completamente a tradição africana, Umbanda é uma valorização da macumba através do espiritismo. Existe uma valorização branca e uma valorização negra que se cruzam, devido a esse contingente de adeptos. A luta racial prosseguirá ainda sob uma forma mais sutil, é verdade, e mais disfarçada.
Se é difícil seguir historicamente os primeiros momentos de Umbanda para o autor, é igualmente difícil descreve-los, pois estaríamos em presença de uma religião a pique de fazer-se; ainda não cristalizada, organizada, multiplicando-se numa infinidade de subseitas, cada uma com o seu ritual e mitologia próprios. O espiritismo de Umbanda retém os elementos essenciais da macumba e do candomblé e ainda conserva o sistema de correspondências místicas; Umbanda então para Bastide, se torna a forma africana de magia branca.
O processo de criação da Umbanda é um processo puramente sociológico, não obedecendo senão a causas sociais, não se explicando senão pelo contato das civilizações. Essa vontade de ruptura que marca a ascenção social de um grupo de cor se alia, entretanto, a vontade de continuidade que reflete as discriminações encontradas nessa difícil ascenção. Orgulhosamente, o negro responde aqueles que rechaçam a sua civilização para a barbárie, mesmo assim salvando tudo quanto possa ser salvo, tudo quanto não contrarie demasiado abertamente seus novos modos de pensar aprendidos na escola ou no contato com outros brasileiros.
Não se poderia dizer melhor senão que esse espiritismo em gestação reflete o segundo momento, mesmo na opinião de umbandistas, de urbanização. É porque, antes de iniciarmos seu estudo, tivemos que procurar na imprensa negra, de algum modo, em estado puro, as reivindicações dos brasileiros de cor. São, com efeito, os mesmos sentimentos – os de uma classe social que queria ser solidária na luta e que entretanto não logra se desembaraçar dos preconceitos herdados da escravidão – que se exprimem, ao mesmo tempo, nos jornais dos negros, em suas organizações políticas ou sociais, e em Umbanda.
Nas palavras de Bastide, é, entretanto mister aqui uma distinção entre o mundo da política e o mundo da mística. Em política, há certo esquema de atividades, luta dos partidos pelo poder, liderança e organização de grupos de interesses; em religião, o que conta é a comemoração do passado divino, são as igrejas já constituídas, as tradições. Assim, pois, no primeiro domínio, uma mudança de valores e de atitudes se traduzirá pela formação de novos partidos ou de novas organizações, que correspondem à subersão das classes; as necessidades inéditas que nascem, criam suas próprias instituições. Na religião, ao contrario, o passado resiste a mudança, pois a tradição é sagrada em essência. Trata-se de uma nova adaptação ao mundo moderno, de uma nova renovação, de preferência a uma inovação. Por aí, a religião e a política correspondem a suas atitudes diferentes em face das novas estruturas sociais, conquanto ambas repousem nas mesmas bases de ressentimento. A religião permite aos negros manifestar a sua grandeza, enquanto as associações, como a Frente Negra, lhe permitem forjar armas para a luta. O espiritismo não é, portanto, imposto de fora do proletariado: é uma criação proletária. E ele segue, em sua evolução, as suas evoluções, as variações da consciência proletária. Tal variação se degrada, insensivelmente em ideologias de classes, ou de grupos étnicos no interior das classes. Outrora, eram as imagens de santos católicos que serviam de máscaras aos orixás: agora, são os orixás que servem de máscaras ás novas necessidades e às novas atitudes de um grupo social em questão.
Para Stefania Capone, “A macumba incorpora e reinterpreta as crenças européias conforme uma visão africana do mundo”. Reiterando as idéias de Bastide, a autora afirma que o nascimento da Umbanda teria nascido da tentativa de recuperar a força e a eficiência dos espíritos venerados da macumba, ao mesmo tempo em que apagava, ao menos no discurso da intelligentsia umbandistas, os vínculos com uma África atrasada e inculta. 14 religiões afro-brasileiras no processo histórico da construção mítica.
De acordo com Yvonne Maggie, a repressão aos cultos afro-brasileiros se inscreve na lógica da crença. Diversos segmentos da sociedade brasileira acreditam e temem o feitiço. Na busca de africanismos, diversos intelectuais optaram por certo tipo de ritual, por uma facção dos diversos segmentos que compõe esses grupos, num papel de legitimação e controle dessas religiões. Participaram dos projetos de criação das federações e união para proteger os “autênticos” da perseguição policial, com isto entregando os “falsos” à repressão. As homologias com o processo de segmentação dos terreiros, tanto no caso das alianças recíprocas entre intelectuais e facções quanto com o processo de acusação e regulamentação jurídico, são homologias no sentido de que inscrevem essa lógica em outro domínio: o domínio do Estado nessa crença, com juízes e intelectuais julgando e optando pelas facções em luta. Ao citar Roger Bastide, evidencia que para ele, o branco teria corrompido o Candomblé e a Macumba, deturpando a “pureza” dessas religiões, acreditando e excitando-se porque estavam possuindo corpos “visitados pelas potências sobrenaturais”.
Segundo Lísias Nogueira Negrão, que pesquisa a Umbanda em São Paulo em seu trabalho Entre a Cruz e a Encruzilhada, bastante recente sobre a especificidades e peculiaridades da Umbanda nesta na cidade, Roger Bastide limitou-se a reproduzir os preconceitos do noticiário jornalístico da época em que realizou suas pesquisas, entre 1944 e 1953, em que a Macumba e a Umbanda nascente, presentes desde a década de 20, apareciam indissoluvelmente ligadas a criminalidade. Não apenas do noticiário jornalístico, Bastide teria reproduzido também a visão das elites ligadas ao Candomblé bahiano acerca da recente religião. O trabalho de Lísias Nogueira Negrão ainda traz um balanço histográfico bem relevante sobre o assunto que será brevemente comentado adiante.
O estudo de Maria Helena V. B. Concone – Umbanda: Uma Religião Brasileira, um dos primeiros trabalhos a considerar a origem caráter nacional da religião, trata-se de um estudo pioneiro sobre a Umbanda, talvez a primeira tese de doutorado defendida sobre ela. Dos estudos sociológicos que focalizaram exclusivamente a Umbanda, A Morte Branca do Feiticeiro Negro, de Renato Ortiz, o mais abrangente e relevante, aprofunda as análises de Bastide, herdando a preocupação quase exclusiva com o discurso dos intelectuais e líderes da Umbanda como legítimo. A mais recente contribuição ao estudo da Umbanda é a de Brumama e Martinez, sobre a trama de relações sociais e terreiros da periferia de São Paulo e a tese de livre-docência de Liana Trindade, Construções Míticas e História, que se preocupa com o imaginário das religiões afro-brasileiras no processo histórico da construção mítica.
Reginaldo Prandi descreve um processo sobre dois ciclos das religiões afro-brasileiras em São Paulo. O primeiro ciclo acontece dos anos 30 aos anos 60, que ele chama de “primeiro movimento: do Candomblé à Umbanda”. A Umbanda crescia com um discurso de branqueamento da religião do culto aos Orixás, que deixava tudo mais “limpo” e aceitável. Passava-se a adotar o espiritismo, baseando-se na doutrina de Kardec. Deixava-se de lado, pelo menos aparentemente, as matanças de animais e o derramamento de sangue. Os passos decisivos foram a adoção da língua vernácula, a simplificação da iniciação, com a eliminação quase total do sacrifício de sangue, iniciação que ganha, ao estilo kardecista, características de aprendizado mediúnico público, o desenvolvimento do médium. Mantém-se os ritos cantados e dançados dos candomblés, bem como um panteão simplificado de Orixás, já porém havia muitos anos sincretizados com santos católicos, reproduzindo-se, portanto, um calendário litúrgico que segue o da Igreja Católica, publicizando-se as festas ao compasso do calendário. Entretanto, o centro do culto no seu dia-a-dia estará ocupado pelos guias, caboclos, pretos velhos e mesmo os “maléficos” e interesseiros exus masculinos e femininos já cultuados em antigos candomblés baianos e provavelmente fluminenses.
O segundo ciclo descrito por Prandi, chamado de “segundo movimento: da Umbanda ao Candomblé”, é caracterizado pela revalorização do Candomblé por intelectuais e pessoas de classe média. A idéia defendida era que a religião brasileira tinha que ter a pureza dos Candomblés da Bahia. Porém, se muitos Pais e Mães-de-Santo vieram da Bahia para São Paulo, onde abriram suas casas de culto, a clientela da classe média e alta não chegava a se tornar adepta, mas apenas fazia consultas aos búzios, muitas vezes às escondidas. Mas a legitimidade ou a suposta originalidade dos Orixás baianos é aceita aos poucos pela sociedade umbandista paulista. É no fim dos anos 1960 e início de 1970 que são abertos muitos Terreiros de Candomblé e que muitas casas de Umbanda passam a ser Umbandomblé. Em Curitiba esse fenômeno começou um pouco depois, no fim da década de 1970, como permite notar a coluna encontrada no jornal Diário do Paraná. Esse fenômeno veio então tomando força, porém a Umbanda ainda é prevalecente. Nas casas de Umbanda pesquisadas pelo Projeto Pra ver a Umbanda Passar: do esquecimento à lembrança, sabe-se que mais de 30% das casas de Umbanda levantadas praticavam a Linha Cruzada.
Dados da pesquisa Pra ver a Umbanda passar revelam que o maior crescimento do número de casas de religiões afro-brasileiras em Curitiba ocorreu na década de 1970, tendo um desenvolvimento de mais de 24%. Lísias Nogueira Negrão faz comentários sobre a Umbanda em São Paulo que se assemelham muito aos dados conhecidos sobre a Umbanda curitibana. Tem-se notícias de alguns seminários realizados em São Paulo por federações umbandistas e candomblecistas a fim de reunir membros dessas religiões, homenagear membros ou casa que se destacaram e ainda criar estatutos para a Umbanda. Em Curitiba, a coluna Umbanda veio anunciando desde começo de setembro um evento interestadual. Aproxima-se a data para a realização da 1ª Convenção Interestadual de Umbanda e Nações Africanas no Estado do Paraná que será efetuada nos dias 29 e 30 de setembro no Clube dos Subtenentes e Sargentos do Exército de Curitiba e a gira de confraternização, no dia 1º de outubro de 1978 no ginásio de esportes do Clube Atlético Paranaense. Tem-se a afirmação deste desenvolvimento pela própria criação da Coluna Umbanda/Candomblé, com apoio das Federações de Curitiba, responsáveis pelas religiões de matriz africana.
Em 1930, segundo Prandi, surge o primeiro terreiro denominado de centro espírita, e só no ano de 52 eles vão aparecer com o nome umbanda. No final dos anos 40, a Igreja se declara abertamente contra a Umbanda, reconhecendo-a como religião inimiga. Até o final da ditadura Vargas, a umbanda passa por sistemáticas perseguições policiais. Nos final dos anos 50, as festas populares de maior participação são as festas de Iemanjá. A década de 50 foi marcada por fatores endógenos à Umbanda e ao campo religioso. Trata-se do surgimento das federações de terreiros de Umbanda e da campanha antiespirita promovida pela CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). Apenas em 1953 foram fundadas as duas primeiras federações legalizadas em São Paulo.
Os anos iniciais da década de 60 foram marcados por intensa atividade organizativa por parte do movimento federativo. O ápice foi o ano de 61, em que se realizaram dois importantes congressos de Umbanda, o II Congresso Nacional e o I Congresso Paulista. A campanha empreendida contra ela por dois adversários de peso, a Igreja e parte da imprensa, começara a frutificar e a antiga repressão torna a se concretizar numa ameaça iminente. Urgia legitimar a Umbanda, e as federações mobilizavam-se no sentido de torná-la respeitável como uma alternativa religiosa.
Em meados dos anos 60 o Candomblé chega em São Paulo e se estabelece até os primeiros anos dos anos 70, se expandindo de diversas maneiras: Pais-de-Santo que vem do Rio de Janeiro e da Bahia para iniciarem seus filhos na cidade, Pais-de Santo que migram para a cidade já iniciados e abrem seu terreiro de Umbanda para depois retornar ao Candomblé, e Pais-de-Santo já iniciados na cidade.
Em seu estudo sobre Os Candomblés de São Paulo, da década de 90, Reginaldo Prandi argumenta como o Candomblé e as demais religiões de matriz africana tem sido tratadas na literatura sociológica e antropológica como manifestação da cultura negra, ou de populações negras, sobretudo no Nordeste e especialmente na Bahia. Talvez por isso, afirma o autor, a maior parte das investigações sobre as religiões dos deuses negros no Brasil seja de estudos etnográficos, em geral monográficos, tendo como referência privilegiada a Bahia, onde os autores procuraram como objeto empírico preferencial um Candomblé denominado jeje-nagô, em virtude da predominância, neles, de elementos da cultura de antigos escravos e determinadas etnias africanas.