Livro didático e propaganda política
Ali Kamel
O Globo, 02 de outubro de 2007
Ainda os livros didáticos, um problema mais grave do que eu
imaginava. Para 2008, o MEC me informa que já comprou mais de um milhão de
exemplares do livro de história "Projeto Araribá, História, Ensino Fundamental,
8", a ser distribuído na rede pública a partir de janeiro. Para ser exato,
1.185.670 exemplares a um custo de R$ 5.631.932,50. É agora o campeão de vendas.
Sem dúvida, o livro tem mais compostura que o "Nova História Crítica", que
analisei aqui há 15 dias, mas, em essência, apresenta os mesmos defeitos e um
novo, gravíssimo: faz propaganda político- eleitoral do PT. Na unidade 3, "A
primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa", o livro diz o seguinte, logo na
abertura, sob o título "Um sonho que mudou a história": "Em 1 de janeiro de
2003, o governo federal apresentou o programa Fome Zero. Segundo dados do IBGE,
54 milhões de brasileiros vivem em estado de pobreza. Em nenhum país do planeta
existem tantos pobres vivendo entre pessoas tão ricas . No mundo, segundo o
relatório do Banco Mundial, 1,2 bilhão de pessoas vivem com uma renda inferior a
1 dólar por dia, cifra que deve chegar a 1,9 bilhão em 2015. Por que, apesar de
tantos avanços tecnológicos, pessoas continuam morrendo de fome? É possível
mudar essa situação? Os revolucionários russos de 1917 acreditavam que sim.
Seguros de que o capitalismo era o responsável pela pobreza, eles fizeram a
primeira revolução socialista da história. Depois disso, o mundo nunca mais
seria o mesmo. Hoje, passado quase um século, o capitalismo retornou à Rússia, e
a União Soviética, que nasceu da Revolução Russa de 1917, não existe mais. Valeu
a pena? É difícil responder. Mas como dizia um membro daquela geração de
revolucionários, é preciso acreditar nos sonhos."
Entenderam a sutileza? Os alunos são levados a acreditar que não há país no
mundo com mais pobres do que o nosso (os autores esqueceram-se da Índia, para
citar apenas um?). E que o Fome Zero seria o sonho de 1917 revivido.
O livro prossegue com pequenos tópicos sobre os principais acontecimentos
mundiais, a revolução russa e seus antecedentes: grande pobreza no campo,
extrema exploração dos operários. Vitoriosos os revolucionários, seus primeiros
feitos são assim descritos: "Estradas de ferro e bancos foram nacionalizados, as
terras foram divididas e distribuídas entre os camponeses e a produção nas
indústrias passou a ser controlada pelos operários. As medidas revolucionárias
do novo governo feriram os interesses da burguesia e das grandes empresas que
atuavam no país." Segue-se um breve resumo da guerra civil — a burguesia e a
aristocracia, apoiados pelos EUA e Grã-Bretanha, contra os revolucionários
liderados por Lênin e Trotsky — e um pequeno verbete intitulado "A ditadura de
Stálin". Nele, lê-se que a URSS foi governada de 1924 a 1953 por Stálin, como um
ditador. "As liberdades individuais foram suprimidas e os adversários do regime
, inclusive os líderes da revolução, acabaram presos ou assassinados pelo
regime." Parece honesto, mas não é: omitir os detalhes da monstruosa ditadura de
Stálin, que levou milhões à morte, é esconder dos alunos o mal que o socialismo
real provocou. Especialmente porque os autores não se esqueceram de destacar o
"bem" que Stálin proporcionou: "O Estado promoveu o desenvolvimento da indústria
de base, como energia elétrica e metalurgia, investiu em educação e na
qualificação de mão de obra e formou cooperativas agrícolas (...) para ampliar a
produção no campo."
Bonito, não? No fim do capítulo, nas atividades propostas aos alunos, fica
estabelecida a distinção entre capitalismo e socialismo: "Os anos 1920, nos EUA,
caracterizaram-se por consolidar a sociedade de consumo. Numa cultura de
consumo, grande parte do tempo e das energias humanas está voltado (sic) para a
aquisição de bens materiais. Sob a orientação do seu professor, debatam os
seguintes aspectos: a) dados que comprovam o caráter consumista da sociedade
atual; b) os efeitos negativos da cultura do consumo para o indivíduo e a
sociedade."
A orientação socialista do livro fica patente em muitas passagens. Veja por
exemplo como os autores definem o Welfare State europeu: "Apesar de ter sido
elaborado, no contexto da Guerra Fria, para afastar a ameaça representada pelo
prestígio que o socialismo despertava no Ocidente, o Welfare State serviu,
também, para concretizar antigas reivindicações do movimento sindical (...)." O
livro se apressa a dizer que o Welfare State durou pouco, graças à crise do
petróleo de 1973 (sic): "Nos anos 1980, os governos de Margareth Thatcher, na
Inglaterra (sic), e de Ronald Reagan, nos EUA, adotaram o modelo econômico de
livre mercado, tornando nula (sic) a intervenção do Estado na economia (...)."
Os alunos devem achar que viver naqueles dois países é um horror.
E Mao? Este parece ser um fetiche dos autores de livros didáticos. O livro conta
que Mao derrotou o capitalismo na China e relata dois episódios, sem referência
aos milhões de mortos que os dois eventos provocaram. "Em 1958, a fim de
aumentar a produção, foram criadas cooperativas rurais e novas indústrias
também. Essas iniciativas econômicas foram conhecidas como o 'Grande salto para
a frente'. Preocupado com a influência de valores ocidentais na China, Mao
iniciou a Revolução Cultural, uma campanha oficial marcada por intensa
doutrinação e repressão." E mais não se diz.
Deixando de lado a História Universal, o que mais espanta no livro é a sua
novidade: a propaganda político-eleitoral. Depois de relatar o sucesso do Plano
Real no Governo Itamar, o livro explica assim a vitória de FH sobre Lula nas
eleições de 1994: "Uma habilidosa propaganda política transformou o candidato do
governo, Fernando Henrique, no pai do Plano Real." Sobre os resultados do
primeiro governo FH, o livro contraria tudo o que os especialistas dizem sobre
os efeitos imediatos do Plano Real: "A inflação foi controlada, mas a um preço
muito elevado. O desemprego cresceu, principalmente na indústria, elevando a
miséria, a concentração de renda e a violência no país." Herança maldita é
pouco.
Depois de contar como o governo foi obrigado a desvalorizar o real, o livro diz
que o segundo mandato de FH trouxe duas conquistas no campo social, como ampliar
as matrículas no ensino fundamental e reduzir a mortalidade infantil. Mas o
capítulo termina assim: "O PT chegou ao poder com a responsabilidade de vencer
um enorme desafio: manter a inflação sob controle e combater a desigualdade
social no Brasil, onde 54 milhões de pessoas vivem em situação de pobreza." Como
os autores disseram no início, o sonho não acabou.
O livro termina com oito páginas sobre a fome no mundo e no Brasil. Há
afirmações assim: "Há mais pessoas desnutridas na Nigéria, um país de 120
milhões de habitantes, do que na China, onde vive mais de 1,2 bilhão de
pessoas." A China é socialista, certo? As causas da fome, apontadas pelo livro,
são as dificuldades de acesso à terra, o aumento do desemprego e a divisão
desigual da renda. Depois de repetir que "o nosso país tem fome" o livro
"esclarece": "O combate à fome é o principal objetivo do governo Lula, que tomou
posse em janeiro de 2003. Para isso, o governo lançou o Programa Fome Zero. A
implantação do programa tem como referência o Projeto Fome Zero _ uma proposta
de política de segurança alimentar para o Brasil, um documento que reúne
propostas elaboradas pelo Partido dos Trabalhadores em 2001. Leia agora parte
desse documento."
E as crianças são expostas a 52 linhas do documento de propaganda partidária
elaborado em 2001 pelo Instituto da Cidadania, do PT. E a nenhum outro. O Fome
Zero, que não conseguiu sair do papel, vira História. Tudo isso distribuído
gratuitamente pelo governo federal a mais de um milhão de alunos. Isso é
possível? Isso é republicano?
Não acredito que o presidente Lula aceite que propaganda política de um único
partido seja distribuída com o uso de dinheiro público como se fosse aula de
história. Não acho também que o MEC concorde com isso. Fica aqui o alerta.
Três detalhes.
O livro, deliberadamente, confunde pobreza com fome. A OMS admite até 5% de
pessoas magras em qualquer população (os geneticamente magros e não os
emagrecidos pela falta de alimento). O Brasil tem 4% de magros e, em
pouquíssimas áreas, esse percentual chega a 7%; a Índia tem 50%. A fome no nosso
país é, portanto, um fenômeno localizado, na casa das centenas de milhares de
pessoas, nunca na casa dos milhões.
O livro, que se bate contra a globalização e o neo-liberalismo, foi impresso na
China. Usando uma linguagem que poderia ser a dos autores, "roubando empregos
brasileiros."
E, por último, para que o leitor tenha certeza da péssima qualidade do projeto,
sugiro uma visita à página 83 do livro de geografia para oitava série, da mesma
coleção ( 1.087.059 exemplares ao custo de R$ 4.859.153,73). Lá, num texto sobre
o Islã, está escrito que a corrente sunita é a mais moderada e que "a xiita ou
fundamentalismo islâmico é a mais radical". Sim, eles acham que o xiismo e o
fundamentalismo são sinônimos. Sim, eles ignoram que a Al-Qaeda, a manifestação
mais brutal do fundamentalismo, é sunita. No mesmo texto, está escrito também
que a Arábia Saudita, o berço do sunismo radical, é ... xiita.
Pobres de nossas crianças.
Visite e divulgue o site www.escolasempartido.org