Acesso em 10 de março de 2007.
ARTIGO
A trama de contradições do MST
José de Souza Martins, O Estado de S. Paulo (17/09/06)
A redução das invasões de terra, pelo MST – Movimento dos Sem Terra –, para favorecer Lula eleitoralmente, mostra o quanto há de maquiavelismo dominando esse problema social em nome de conveniências partidárias. A prática não é nova. Já faz alguns anos que os especialistas registram esse movimento oscilatório entre as ações mais agressivas do MST e suas ações tépidas, com intuito eleitoral claro. O movimento ondulatório indica que o MST reconhece que não tem o apoio eleitoral dos que votam e decidem o destino do país, ao reconhecer que suas ações mais radicais tem como provável conseqüência a punição eleitoral de seu partido político, o PT. Teme a opinião pública suprapartidária, de que sua legitimidade tanto dependeu.
A organização se vê, assim, numa trama de contradições de administração difícil e de superação pouco provável. De um lado, o MST só tem sentido como grupo cuja identidade está por inteiro na luta social dos trabalhadores sem-terra. Fora dela, é uma anomalia política. Ao mesmo tempo, o que vemos na artimanha de refrear as ações que lhe são típicas e próprias, é que o MST quer também e principalmente colher votos nas urnas áridas da incerteza política brasileira, desfibrando-se na demanda de que se tornou sigla emblemática.
O MST, desde o seu nascimento no regaço da Comissão Pastoral da Terra, teve, já no berço, por ama de leite, a ideologia mal fundamentada dos partidos e grupos residuais de esquerda que tinham e têm da nossa questão agrária uma compreensão postiça e tosca, instruída pelo marxismo dos manuaizinhos “prêt-a-porter”. São aqueles livrinhos que cabem no bolso dos militantes e nas consciências políticas de retalho, pois dispensam reflexão e pensamento próprio e crítico. Daí a dificuldade para que a organização compreenda seu próprio lugar na história e seu próprio potencial de inovação social.
Não obstante, ao se envolver decisivamente na política partidária, juntamente com os setores da Igreja que o apóiam e perfilham, atuando em regiões que são redutos tradicionais das modalidades atuais do voto de cabresto, o MST interfere positivamente no processo político brasileiro. Em princípio, a ação política do MST rompe o laço que tem atado historicamente a testa dessas populações ao mourão da porteira dos caciques políticos do interior.
O sentido libertador dessa interferência, porém, se perde na constituição dos currais eleitorais do PT, beneficiado por essa ação do MST. O sentido libertador de sua luta social se perde nesse novo curralismo político-partidário, desatando a cabeça dos trabalhadores de um mourão para atá-la noutro. O MST, como o PT, partidariza sem politizar e, sobretudo, sem emancipar. Em tudo, ficamos na mesma.
Nessa relação de toma lá e dá cá com o PT e o governo Lula, o MST tem sido voluntariamente lesado num notório desencontro entre o seu toma lá e o dá cá do governo petista. Na mesma semana da constatação do recuo nas invasões de terra, o MST divulgou uma nota sobre a ocupação do prédio do Ministério do Desenvolvimento Agrário, em Porto Alegre, por um grupo de militantes. Queixa-se de que a meta de assentamentos no Rio Grande do Sul, berço do MST, no início do governo Lula, era de 15 mil famílias. Até agora foram assentadas apenas 320 famílias. Após a mobilização do MST, o Incra se comprometeu a assentar 1.070 famílias em 2006. Até este momento, apenas 96 foram assentadas. O governo do PT optou claramente por uma reforma agrária micha, desproporcional à capacidade de mobilização e de pressão do MST, mas proporcional ao seu conformismo.
Ao mesmo tempo, a reforma agrária está sendo batida pelo Bolsa-Família, muito mais leve do que a enxada e muito mais barato. Sem contar a disseminada prática de receber o lote de terra, depois de anos de espera e sofrimento, e sua venda ou arrendamento, embora sejam práticas ilegais, em relação às quais ninguém faz nada. Ora, a reforma agrária tem sido em todos os países o instrumento para combater os efeitos irracionais da renda da terra, o preço não raro especulativo da terra, no desenvolvimento econômico. A renda fundiária, que é em si mesma improdutiva, representa dedução do capital necessário ao uso produtivo da terra, favorecendo o atraso social e técnico. Ora, o que está se vendo em assentamentos em diferentes lugares do país é a prática disseminada dessa modalidade de parasitismo, que constitui o cerne da negação da reforma agrária e de tudo que ela representa. Para muitos, receber um lote é apenas título de direito a viver de renda, extorquida da sociedade inteira, justamente o que a reforma deveria combater e não combate.
A reforma agrária do Estado brasileiro, e a própria reforma agrária petista e do MST, na imperícia agrária do governo Lula, bateu no muro de contenção de sua viabilidade política, bateu no seu limite. O Brasil tem sido um dos últimos países do mundo a tentar a via da reforma agrária como instrumento de reforma social e de justiça fundiária. É um dos raros países que ainda podem recorrer à reforma agrária na constituição de um sistema econômico pluralista.
O caminho brasileiro da reforma, mediante a difusão da agricultura familiar encontrou pela frente vários inimigos. Não só a política vesga de optar preferencialmente pelo agronegócio de grande escala, como a reação contrária dos defensores da reforma que não enxergam que a reforma agrária só é viável apoiada num modelo misto, aí entendida a produção da agricultura familiar como modalidade de agronegócio com funções sociais explícitas e efeitos sociais imediatos. O MST desenvolveu formas altamente respeitáveis de organização econômica da produção familiar. Comprometeu-as, porém, ao tentar fazer delas mero instrumento de uma coletivização fantasiosa e de um socialismo sem sustentação teórica nas tradições de esquerda. E, pior, instrumento de poder e de sustentação política de um partido e de um governo que, como os outros partidos brasileiros, não sabe o que fazer com a reforma agrária.
José de Souza Martins é Professor Titular de Sociologia na Faculdade de Filosofia da USP.
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