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Ocupações universitária na historia (02/06)
Por Henrique Carneiro, Ruy Braga e
Alvaro Bianchi*
A ocupação da reitoria
da USP, da Unesp-Marília e do Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas da Unicamp pelos estudantes dessas universidades tem sido
objeto de muita discussão. Em 1968, durante a ditadura militar,
outra ocupação de prédios da USP pelos estudantes, o da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras na rua Maria Antonia, dividiu as
opiniões e as atitudes, definindo quase geograficamente o mapa do
espectro político paulista: quem estava no lado da rua do Mackenzie
e quem estava no lado da USP. Muitos dos que hoje são professores
estiveram naquele momento ocupando a sua faculdade. Mas não são
poucos os que se emocionam ao falar da Maria Antonia e hoje são
contrários às novas ocupações.
A ocupação nas reitorias e universidades é um ato simbólico por meio
do qual tem lugar a reapropriação pelo público daqueles espaços que
teoricamente são ou deveriam ser públicos. Como tal, a ocupação é
uma ressignificaçã o do território na qual a sede da autoridade
universitária, da tradição acadêmica e da burocracia universitária
passa a ser a sede de sua contestação, transgressão e
questionamento. O espaço da imobilidade passa assim a ser o espaço
do movimento.
A ocupação é, também, um ato por meio do qual os estudantes
interpelam as autoridades universitárias e governamentais colocando
em evidência uma agenda política que de outro modo permaneceria na
penumbra. Exercendo seu direito à rebelião, os estudantes estão
redefinindo os termos da discussão e argumentando, com seus atos, em
favor da autonomia universitária e da defesa de uma universidade
pública.
A ação dos estudantes é uma resposta vigorosa à crise das
universidades paulistas. Essa crise não começou com os decretos do
governador José Serra. A redução do quadro docente e seu
envelhecimento, as restrições orçamentárias, o estrangulamento do
financiamento estatal para a pesquisa e a pós-graduação são sintomas
dessa crise. Mas se o governador não criou essa crise ele sem dúvida
a agravou com seus decretos, com a criação da Secretaria de Ensino
Superior e com a nomeação do professor José Pinotti, vice-reitor das
Faculdades Metropolitanas Unidas como secretário.
O atual movimento estudantil expressa, também, a insatisfação contra
um governo federal que deu início a seu mandato anunciando a vitória
da esperança sobre o medo para, logo a seguir, frustrar essas mesmas
esperanças. Condenados a ver a universidade na qual depositaram o
seu futuro sucateada e o próprio futuro confiscado pelos governos
estaduais e federal os estudantes resolveram agir. O alcance dessa
ação ainda depende da capacidade de articular um programa de
renovação da universidade com um programa de transformação social.
Embora vigorosa, a ação dos estudantes não pode ser considerada
desmedida ou inusitada. Não há novidade em uma ocupação
universitária, assim como não há novidade na oposição que ela
desperta entre os setores mais conservadores da comunidade acadêmica
e da sociedade.
A história da universidade é também a história do movimento
estudantil e de suas ocupações. Em nosso continente, a agenda da
autonomia universitária, da gestão pela comunidade universitária e
da docência livre foi apresentada pela primeira vez pelos estudantes
na Universidade de Córdoba, em 1818. Rapidamente os estudantes
despertaram a simpatia de um nascente movimento sindical que e eles
se uniu nas ruas de Córdoba.
Também houve, nessa ocasião, a ocupação da universidade, e também
não faltaram os que condenaram os estudantes, como fez o bispo do
Córdoba, que anunciou horrorizado a chegada da “hora das democracias
e do proletariado, criada e saudada com ardor pelos apóstolos da
demagogia, hora de subversão e anarquia geral”.
O movimento de Córdoba definiu para a América Latina um paradigma de
universidade pública, laica e democrática, co-gerida por estudantes
e professores, independente da Igreja e do Estado e aberta aos
problemas de sua época. Esse paradigma influenciou imediatamente
movimentos de reforma universitária no Peru, Chile, Cuba, Colômbia,
Guatemala e Equador e, durante a década de 1930, no Brasil,
Paraguai, Bolívia, Venezuela e México. Olhando a partir do presente
são poucos os que duvidam que a razão estava com os estudantes de
Córdoba que ocuparam a universidade e não com o bispo da cidade.
E hoje, perante as ocupações na USP, Unesp e Unicamp quem estaria
disposto a fazer o papel do bispo? Alguns pedem a intervenção
policial. Caso isso ocorra, as universidades passariam a ser
ocupadas não pelos seus alunos e funcionários, mas por uma força
militar repressiva inaugurando uma situação inédita e que se
tornaria a maior violação do princípio da autonomia universitária.
A universidade, sede do pensamento crítico e do debate livre das
idéias estaria cedendo a voz da razão para a força das armas. A
situação da USP é a mais crítica. Ainda é tempo da reitora Suely
Vilela realizar o que havia se comprometido: conversar com os
estudantes numa audiência pública, ouvir as suas reivindicações e
explicar-lhes a sua posição diante dos decretos do governador Serra.
Ainda é tempo de ser convocada uma reunião aberta no anfiteatro na
qual a crise entre a comunidade acadêmica possa ser debatida, sem a
presença da polícia.
Neste momento, a simples retomada da negociação e a reabertura do
diálogo já seriam uma demonstração de respeito à vocação crítica e
democrática da universidade autônoma. O outro caminho é o da
repressão policial que abrirá uma ferida que será difícil de curar
no seio da USP e de todas as universidades públicas paulistas e
brasileiras.
* Henrique Carneiro é professor do Departamento de História da
Universidade de São Paulo (USP).
Ruy Braga é professor do Departamento de Sociologia da Universidade
de São Paulo (USP).
Alvaro Bianchi é professor do Departamento de Ciência Política da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Artigo publicado originalmente no blog da ocupação da USP
http://ocupacaousp. blog.terra. com.br
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